20

- Meu prato favorito também é um estrogonofe! Você coloca ketchup e mostarda? - perguntou Xamã imaginando um grande prato de estrogonofe com um imenso copo de Coca pingando de gelado. 
- Claro que coloco. Quem você acha que sou? Além do mais, você acha melhor de frango ou carne bovina? – respondeu Sabbath. 
- Bovina, sem sombra de dúvidas. 
- Aí é onde nos separamos meus amigos – falou Makalister – o de frango com certeza é superior. 
- Uma culter como você... EU ESPERAVA UM TOQUE MAIS REFINADO! - falou Xamã rindo, por alguns longos minutos, tinham conseguido esquecer suas horríveis situações atuais. Xamã parou de rir e viu que Sabbath e Renton tinham voltado a realidade. Respirou fundo, a última investida iria começar. 
Levantou sem se importar com as dores de seu corpo e olhou para onde deveria estar sua mão. Era hora. 
- Vamos lá! 
O fogo se apagou. Passaram pelas manchas de sangue pintando o chão e a neve e seguiram na única direção que era possível ir. Para cima, em direção ao fundo do passado. 
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Parou em frente a grande porta adornada de ouro e alguns diamantes reunindo toda a coragem que ainda restava. Apoiou sua mão nela e viu como estava sujo da longa subida, cortes de pedras e pingos ressecados das estalactites tatuavam seu braço e suas mangas jaziam rasgadas. Deixou o peso de seu corpo fazer o trabalho e a porta cedeu. 
O exterior da mansão era muito mais ameaçador do que a parte de dentro e isso deixou Viratempo com mais medo ainda. Nada naquela aventura infernal fazia sentido para ele, os Retornados, o Bloodmancer com roupas pré-viscerais, o monge ter morrido por balas normais, o mapa secreto, e agora essa mansão que era assustadoramente convidativa, como se nenhum mal estivesse à espreita. 
Não sabia se tremia de raiva ou de horror criadas pela mesma coisa: Sua intolerável ignorância. Colocou seus pés dentro da mansão e deixou seu aterrador clima o cercar. A luz entrava sem problema e nenhuma janela estava bloqueada. A monotonia da cena parecia que ninguém morava ali por anos, lentamente começou a sentir uma afinidade. Seus músculos congelaram. 
Todos os anos de estudo de Viratempo não foram o suficiente para fazê-lo conseguir entender aquilo. A afinidade normalmente era sentida como um cheiro, mas esta veio como uma grande onda. Se sentia preso em um recipiente com piche, não tendo como fugir de nenhuma maneira. Era tão denso, nunca achou que uma afinidade assim poderia existir. Seria assim o verdadeiro poder de um Arqui-Afinado? A única pessoa que Viratempo conseguia pensar que poderia ter algo parecido com essa quantidade de afinidade era ele, William Gibson Cream. Algo dentro dele acendeu. 
Deu um passo lentamente. Com sua raiva e vingança ele se movia em direção da resposta, todos os seus sentidos de Darkmancer o diziam para fugir dali, para esquecer de tudo e ir embora. Mas não seria justo, por seu pai, Sabbath, Makalister, Xamã e ele mesmo. Não seria nem um pouco justo. Ele tinha de fazer isso, não só pelos outros, mas por si principalmente. Tinha imaginado aquela cena tantas vezes na cabeça que seus passos ficavam mais fortes e mais rápidos a cada tentativa de seguir em frente. Não importava a força ou poder do inimigo, seguir em frente era a única opção.  
Percebeu que a sala que estava era grande, com várias estantes cheias de livros e alguns sofás, provavelmente a biblioteca da mansão, nada de estranho a povoava e dela já se podia ver o hall de entrada com um chão de mármore que refletia a forte luz de um grande lustre. Olhou para uma porta fechada da biblioteca e notou que o “mercúrio” vinha dali. O Hall ficaria para depois. O que importava agora e sempre era Cream. 
Se dirigiu a porta e colocou a mão na maçaneta de ouro, estava tão fria que poderia chegar a queimar. O que tinha ali dentro de tão temeroso? 
Girou-a e dando uma leve força, deixou a porta se abrir sozinha e entrou em posição de combate. As estrelas davam voltas impulsivamente dentro de sua íris, esperando qualquer milímetro de movimento. 
Ao se abrir, uma paisagem que Viratempo nunca esperara ver se revelou diante de seus olhos, mesmo sem ter uma confirmação concreta ele sabia, não, ele tinha certeza. 
Sentado em uma grande cadeira estofada de veludo estava um corpo, engolido pelo tempo e marcado com sangue nas roupas velhas e ricas. Os olhos estavam arregalados e a boca aberta com sua mandíbula inferior quase se rasgando. Na testa um grande buraco mostrava mais da cadeira revelando o método da morte. 
De alguma maneira ele sabia, só podia ser ele. Só podia ser Cream. Aquele imenso poder se dissipou e o que restou foi um senso incompleto de satisfação.  
William estava morto, em sua frente jazia o corpo dele, mas aquilo não o fez bem. Não houve explicações, não houve pedido de misericórdia, não houve nem uma simples luta. Apenas o resultado, exatamente o que Viratempo sempre tinha sonhado. Mas sem tudo isso antes... Será que valeu a pena? 
“Valeu a pena subir toda essa maldita montanha, passar por tantos empecilhos, apenas para encontrar a porra de um corpo morto?! VALEU!?” 
Ele tremia de raiva, todo aquele sofrimento, todo aquele terror, medo e precaução para quê? Mais perguntas?! A única coisa que descobriu foi o paradeiro de sua mãe, e nunca saberia o que ela fez ou porque ela fez. A única provável pessoa que pudesse lhe contar tinha um antigo furo em sua cabeça e umas das coisas que sempre soube era que nenhum homem morto contava histórias.  
“WILLIAM! SEU DESGRAÇADO! NÃO BASTAVA MATAR MINHA MÃE E DESTRUIR A VIDA DE MEU PAI, TEVE A AUDÁCIA DE ATORMENTAR OUTRAS TRÊS PESSOAS E NÃO TER A MÍNIMA DECÊNCIA DE EXPLICAR! SEU FILHO DA PUTA!” 
Ao andar alguns centímetros para o lado viu o que poderia ser uma resposta à grande raiva que sentia. Na escrivaninha atrás da poltrona jazia um pequeno livro, mais parecido com um diário. Era de um couro marrom desbotado e não havia nenhuma identificação. 
“Se esse merda já fez tudo isso comigo, ele pode ter planejado alguma armadilha ao pegar o livro” Graças ao rápido pensamento de Álvares, levitou o diário em sua direção, sem que nenhum tipo de surpresa – se existisse uma – acontecesse. O couro da capa era velho e cheirava a mofo. Quase abriu o livro quando sentiu por milissegundos aquela mesma densidade, fechou-o rapidamente. 
“Vou checar o bondinho, quando estiver lá embaixo eu vejo este diário” 
O enfiou no bolso e passou pelo hall, sua grandeza lhe deu uma leve vertigem, o lustre era adornado de minérios vermelhos e as luzes alternavam entre lâmpadas e velas que foram recentemente trocadas. Olhou para o mármore e sua reflexão não combinava com o luxo dali. Nas paredes vários quadros com estilos classicistas e uma grande lareira tilintava ao fundo do grande local, acima dela um vitral com um estranho ser, parecia um humano, mas alguns traços o faziam cair no “vale misterioso” da afeição antropológica. Ao vê-lo, sentiu o mesmo calafrio ao ver o mapa no posto Voraz. Olhou para sua mão e viu o diário, não lembrava de segurá-lo. O colocou no bolso do casaco novamente e saiu pela grande porta da frente da mansão, deixando o vento gelado o acertar de frente. Viu um grande caminho de pedras que se dividia em dois, um deles descia a montanha e o outro contornava a mansão. 
Via todas as estupendas janelas dela e assim tinha um pequeno vislumbre de onde morou Cream enquanto dava a volta pela construção. Tinha pequenos fechos de visão para quartos que pareciam fechados faziam décadas, móveis que tinham o estilo da primeira época visceral decoravam os pequenos vislumbres que tinha ao andar pelas pedras sujas de neve. 
“Quantas pessoas moraram aqui antigamente?” pensou ele, uma questão tão importante que Viratempo não teve um pingo de preocupação em responder. Descendo um pouco mais o caminho sujo de branco chegou na estação do bondinho, lá estava ele, parado, esperando que alguém o usasse para fugir do inferno. 
Um sorriso apareceu em Álvares. Era hora de ir embora. Pensou nos outros que já estariam mortos à essa altura, e pensou que fez jus aos seus desejos. Cream estava morto. Era hora de seguir em frente. 
No meio do primeiro passo em busca de fugir, a razão o indagou: o corpo já estava em partes avançadas da decomposição. Já tinha estudado casos de afinidades poderosas que se mantinham no corpo depois de algumas horas, mas dias ou até semanas? O quão poderoso tinha que ter sido Cream para esse poder permanecer ao seu redor? 
O diário vibrava, o pegou e viu um símbolo que nenhum afinado gosta de ver, na parte de trás dele – do qual ele não checou – gravado estava no couro um triângulo com duas bolinhas nos lados e com uma cruz dentro, que significava uma única coisa: 
NÃO TOCAR. RECIPIENTE DE ALMAS. 
Tarde demais. 

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